sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

NOVA GRAFITAGEM

Depois de meses, desci novamente uma ruazinha que passava no horizonte, após a curva que eu tomava com frequência. Senti os detalhes do percurso, o cheiro úmido, a nova grafitagem. Havia uma escada na calçada por onde eu andava, passando, à frente, pelo mesmo lugar. Meu amigo me dizia que a gente nunca volta, é impossível voltar. A gente sempre anda pra frente, mesmo que passe de novo por um velho lugar, como eu passava por aquela ruazinha, me reconhecendo. Eu era um homem novo, novo a cada dia. E a rua era a quieta, viva como um rio... Pensei que um homem nunca pode se banhar no mesmo rio, porque ele e as águas são, a cada momento e sempre, mutáveis. E os degraus da escadinha eram, pra mim, compreensão e mensagens.
Eu tinha que pegar uns trocados para o dia e resolver os apontamentos de uma pequena lista, escrita num rasgo de papel que trazia comigo. Nela, afazeres e encontros. Eu não costumo anotar as coisas, gosto quando elas acontecem por si. Mas a sociedade me traz coisas chatas, na caixa de correio, no meu portão, mesmo que eu fique em casa silenciosamente. E eu as anoto e as elimino, como um matador de aluguel.

***

Hoje eu acordei diferente. Levaram algo do meu olhar. Dois exus levaram meu anjo algemado a outro plano e eu tive dor. Quando voltaram, horas e séculos depois, me anjo estava machucado. Ele sofrera comigo e intensamente por coisas que ainda não fizemos, então acordei diferente, como acorda um náufrago na ilha remota.
A cidade então ficou também diferente. As pessoas, seus olhares e abraços, ficaram diferentes. Novamente os multiversos se comunicaram. Dos meus três guardiões, um fora lesado, e eu, que andava jovem, sorridente, de peito aberto, percebi que nem toda justiça é boa, que o éter não é tão vazio.

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As flores aparecem no momento certo. As frutas amadurecem e formigas colhem. A água, pela gravidade da cascata, desce, borbulha, sempre e independente de eu estar ali como mero observador. Tudo tem seu tempo certo de acontecer, como o som que saiu do canto, navegou as ondas pelo ar até o ouvido, tocando internamente o tímpano e os pelos auriculares mínimos, e ressoou eletromagneticamente para meu entendimento. O canto do pássaro, ouvi e reconheci.

***

Volto para casa, meu esconderijo. Ela foi arrombada por vários espíritos. Eu vi um lobo, depois um raivoso e negro cão. Vi uma carranca na parede e ela era lindamente assustadora, para minha proteção. Eles disseram que eu enterrasse uma pedra, que ofertasse e pedisse. O terceiro anjo quer se aproximar, dizer seu nome e os seres que caminham em volta da casa pela madrugada, mas ainda não escuto o canto seu. Talvez eu não esteja ainda pronto... o tempo das coisas...
Dormi e acordei diferente.
Quando alvoreceu, havia orvalho sobre as folhas. Dos vidros gotas desciam condensadas e eu vi as nuvens pela janela da manhã. Eu sei que tudo está se reorganizando, como as flores surgem e os frutos amadurecem e as formigas colhem... Tudo sempre se organiza, é o princípio natural da matéria e do espírito. Eu sofri a dor. Eu agradeci por ela, que me fez ver um novo e repentino multiverso condensado.