Eu cheguei numa cidade do interior de Santa Catarina... tão
pequena que até os restaurantes fecham ao meio-dia; até os cachorros têm tempo pra não latir, ficam curtindo o marzão que parece querer comer o
horizonte e as dunas... Eu não sei porque aqui os cachorros são diferentes, não
latem, ou se latem, latem baixo... eu já não lembrava como era uma noite sem os
constantes latidos do Laranjal... aqui o som permanente é o da maré, que de
noite bufa alto e na madrugada é um apelo pra beirar a praia.
***
Eu já vim aqui umas quatro vezes... eu costumo voltar sempre aos mesmos
lugares, pois quando repetimos os lugares visitados, percebemos o quanto temos mudado.
***
Eu lembro de um lugar que me marcou quando criança... uma
árvore que eu gostava de subir
[ainda nem era um jacarandá na minha mente de menino, apenas
uma amiga com folhas e galhos e flores e braços...
Havia também uma calçada de ladrilhos com estranhos
degraus... eu tinha uma sensação de alegria absoluta naquele espaço e voltei lá, depois de décadas, mais impuro e terrivelmente responsável. Eu já
não era um anjo; eu havia poluído meu coração com o mundo dos adultos... eu
agora era um cara sério, em breves e repentinas férias, procurando a si mesmo; buscando
uma brasa que pudesse virar chama e queimasse estes tênues gravetos de meus
subterfúgios biográficos...
***
O jacarandá era menor, ou era meu ângulo de visão que havia
mudado... eu cresci, ora bolas... deixei de achar graça naqueles galhos
retorcidos que eram, ao mesmo tempo, obstáculo e glória. A calçada também
estava diferente... a escada, agora tão pequena... nem parecia aquela que eu
subia com a ajuda das mãos...
Aquele lugar definitivamente não era o mesmo... não era o
lugar da minha memória... era apenas o mesmo endereço. Mas tudo bem, eu também
já era outro, como sempre, a todo instante outro... mas quando eu cheguei lá eu
entendi a minha própria visão; eu percebi várias coisas sobre mim, sobre as
pessoas que me cercaram desde os idos tempos em que esta escada era grande até
agora... todas as transformações... Então que eu percebi a vida é uma
transformação rápida e constante, como as ondas que não param de chegar na orla,
no seu tempo
[sempre certo tempo
e que, assim como as ondas, a vida é bela, forte e
admirável... Mas a vida só é fantástica pra quem percebe, como o horizonte é percebido por um sábio e sereno cachorro, a lançar seu silêncio no mar...
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