sábado, 14 de novembro de 2009

O HOMEM FEIO E O HOMEM MAIS FEIO (à moda dos chineses)


Preso porque assutava as criancinhas o homem feio foi conduzido à Polícia. O delegado olhou-o e concordou que sua cara era, em verdade, um perigo público. Colocou-o na cadeia durante dois meses pelo crime de feiúra(1). Hong-Fung-King chorou muito atrás das grades, mas isso de nada adiantou. Insistia que não era feio por querer mas obra de condições ancestrais e metafísicas. Enquanto isso os dois meses se passaram. Solto, protestou. Gritou ao delegado que era vítima de uma exceção. Que com os outros não faziam o mesmo. Ponderou o delegado, com rara sabedoria(2), que o tratamento de exceção que lhe davam era devido ao fato de ele ser um feio excepcional. Hong-Fung-King disse que todos os feios da cidade deveriam ser submetidos à mesma penalidade.
- Mas nenhum chga a assustar criancinhas, como você, com o simples mostrar-se.
- Deve havê-los feios como eu. Não queira me fazer mais feio do que sou.
- Previno-o, filho, a que não busque encontar gente pior que você. será seu mal e sua morte. Você se decepcionará e viverá para sempre humilhado. Confie em mim: você é pavoroso.
- Pois bem, eu lhe trarei aqui pessoas mais feias do que eu, vivendo nesta mesma terra. Mas o senhor, como delegado, terá que condená-las, como fez a mim, por crime de espanto e atemorização.
- Não farei isso. Alguém mais feio que vocêmerece a morte. À vista. é um perigo público, um espavento, uma coisa de outro mundo. Se encontrar alguém mais feio, pode matá-lo onde encontar.
Hong-Fung-King partiu, então, munido de um revólver que o próprio delegado lhe emprestou(3), e disposto a liquidar quem fosse pior que ele em seus atributos físicos. Do decorrer dos dias tirou apenas o que o sábio delegado lhe dissera: uma humilhação cada vez maior. Reparando bem em seus traços fisionômicos, e comparando-os com a gente que encontrava , forçado lhe era concluir que ainda os mais feios não eram tanto quanto ele próprio. De modo que a sua mágoa crescia, seu ressentimento aumentava, sua dor o devorava. Até o dia em que, ao dobrar uma esquina, deu com algo de arrepiar os cabelos. Olhou bem e chegou a conclusão de que aquele era pior do que ele. Ergueu o revólver e disse para o homem aturdido:
- Vou matá-lo!
- Por que? Por que? Por que? Por que? Por que? Por que? - interrogou o homem numa repetição enfadonha ditada pelo pavor.
- Porque tenho uma ordem: - explicou Hong-Fung-King - a de livrar a face da terra de qualquer homem que seja mais feio do que eu.O homem olhou-o aterrotizado e, juntando as mãos em atitude de oração, disse, os olhos esbugalhados:
- Eu sou mais feio do que o senhor? Sou mais feio? Então, por favor, pelo amor de Deus, me mate!(4)

MORAL: DAS CONDIÇÕES FÍSICAS TIRE-SE UMA ESPIRITUAL: NÃO ACUSEMOS NINGUÉM DE BURRO PORQUE ELE PODE SER DESSES QUE TÊM UMA RESPOSTA PRONTA E BRILHANTE E ENTÃO, QUEM SERÁ O BURRO?

1. Art. 248. Parágrafo 8, do Código Kaligeno.
2. Era um delegado Chinês, não esquecer.
3. Ironia.
4. A história, literalmente, termina aqui porque este é o ponto dela que interessa, mas em verdade, ela termina com a funda consciência de Hong-Fung-King em ser o homem mais feio sobre a face da terra. Se vivesse na era atual e em Hollywood, no mínimoganharia um Oscar. Não sendo assim destinou a si próprio a bala que reservara ao homem mais feio.

Retirado do livro "Fábulas Fabulosas" de Millôr Fernandes. (Recomendado)