sexta-feira, 3 de julho de 2009

A BARBA DE AARÃO


Aarão tinha uma barba. A barba de Aarão. Era vistosa, a referida barba, e cuidada com muito zelo. Recebia, cotidianamente, longos afagos e, de quando em quando, tratamentos específicos da cosmética francesa.
Em frente ao espelho, Aarão reparava, com sua pequena tesoura, desnorteados fiapos que ignoravam o seu refinado senso estético. Penteava o bigode curvo e nele borrifava um desodorante hiper-hidratante à base de pró-vitamina A.
Costumava, no intervalo entre os pensamentos e durante as longas caminhadas pelas ruas, acariciar a longa barba, a barba de Aarão. E tinha belas mãos, embora não recorde seu ofício de origem, mas lembro que árduo não era, pois devia proteger as mãos que protegiam a barba, a barba de Aarão.
Mas foi numa esquina dessas que a vida de Aarão mudou radicalmente. 90º e dera de cara com seu amigo Rúbio, que vinha acompanhado de seu filho, que pra essa específica história não importa o nome, embora posso descrever como aqueles meninos de cabelo vermelho, sardas e óculos, biotipicamente diabólicos. E foi este menino, este pequeno demônio, que, com sua pueril crueza, mudou a vida de Aarão para sempre.
- Tio Aarão... quando o senhor dorme o senhor põe a barba por cima do cobertor ou o cobertor por cima da barba?
Aarão sorriu, desconversou, se despediu e seguiu sua caminhada, regada a carícias barbísticas. Contudo, na noite, após o banho e o tradicional café com leite, coube-se em sua ceroula e pôs-se, confortavelmente deitado, a esperar a dimensão dos sonhos. Mas, antes de embarcar no trem reminiano, lembrara-se da terrível pergunta, aquela do pequeno diabo, e questionou-se se, em seus tranquilos e serenos sonos, colocava a vasta barba, a barba de Aarão, sobre ou sob o cobertor de pena de gansos.

***

Cobriu a barba, mas sentiu-se terrivelmente estranho. Descobriu a barba, e notara-se nu. Cobriu a barba novamente: não! Definitivamente não dormia com a barba sob os panos. Descobriu-a pela segunda vez, mas teve plena e convicta certeza que também não dormia com ela por cima da coberta.
E nesta terrível dúvida que Aarão passou exatos 40 minutos cobrindo e descobrindo a barba (a barba de Aarão) sem saber de fato de que modo costumava se deitar. Levantou-se, insone, e foi tomar outro café. Viu um pouco de TV, acariciando a barba com uma melancolia ímpar... Sentia-se mal, pela primeira vez em décadas, com sua querida (até então) barba, a barba dele. Depois de algumas horas, conseguiu, com muito pesar e desconforto, dormir. E não recordo se dormira com a barba sob ou sobre o cobertor naquela noite, mas posso afirmar que as noites (e também os dias) de Aarão nunca mais foram tranquilas.

MORAL: Nunca levante questões desnecessárias: quem procura pêlo em ovo, com certeza encontrará.

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