segunda-feira, 9 de julho de 2007

CHOCOLATE

Estavam lá! Horas, dias, semanas se passavam e eles continuavam lá! Entrincheirados! Devidamente camuflados, esperavam a ordem do comandante Vierbach para atacar a tropa inimiga. Tensos, entreolhavam-se. Havia meses que não saíam dali. Mas aquele dia era diferente: os tiros cobriam-lhe as cabeças como se o céu lhes estivesse cuspindo fogo. O medo e a ânsia faziam os soldados esquecerem o frio, a fome e o passado: nada mais havia! Apenas o sangue e a destruição, o ódio e a ambição, brindados com o perfume da morte.
- Hans!? Que dia é hoje?
- Seis de junho, Markus.
Ao som das balas, os primos Hans e Markus, soldados do 3º batalhão da infantaria nazista, recrutados aos vinte anos de idade, mantinham seu companheirismo de infância. Cresceram juntos e se amavam como irmãos. Não tinham muitos objetivos na vida e seus ideais políticos nem eram tão fortes assim, mas tiveram que servir o exército do terceiro Reich e esta era a realidade.
Nunca puderam optar muito em suas vidas. Hans ajudava o pai numa oficina mecânica, em Dresden. Markus estudava música, na mesma cidade. Eram pobres e sabiam que só seu árduo suor poderia proporcionar o brilho metálico e vil aos bolsos sedentos e humanos. Não pensavam muito em tudo o que lhes rodeava nem davam a real importância aos pequenos detalhes que lhes faziam felizes. Mas na guerra era diferente: Markus lembrava do seu violino, das meias que sua mãe guardava com carinho em suas gavetas e do jeito de seu pai deitar no sofá após as refeições. Hans queria, ao menos mais uma vez, tocar os belos seios de sua amada Anna, sentir o perfume das fréseas no lago e ter os pés cobertos por sua mãe, como na infância.
Sabe-se lá quem dirige esta máquina louca do destino, só se sabe que ela fez escala no inferno e deixou os primos lá, para uma viagem sem volta. Estavam no exército alemão e, quisessem ou não, deviam se adaptar às regras, à política e à luta.
- O comandante Vierbach foi atingido! O comandante Vierbach foi atingido!
- Você está bem Markus?
- Sim.
- Como vai a perna?
- Ainda dói.
- Continue abaixado. Não saia da trincheira. Trarei-lhe água.
Hans correu até o centro da trincheira, esquivando-se de centenas de corpos que lhe atravancavam o caminho. Fora buscar morfina para o primo que havia sido atingido na perna. Tinha pressa: Hans sabia que Markus não agüentaria a batalha. Era frágil. Hans sentia o primo esvair-se como a brisa na manhã e o sol, que antes lhe dera força e inspiração para tocar seu violino, amanhã estaria putrificando seu cadáver pálido. Corria: Hans corria.
As balas e os gritos formavam a ópera de Thanatos e o vermelho se espalhava pela praia como se o sangue brotasse da areia ou escorresse pela pele úmida do planeta. Hans, ao longe, ainda pôde ver o corpo de Markus ser levado por dois soldados à enfermaria, mas nada conseguiria fazer. Não podia evitar que Markus fosse embora.
De volta à trincheira, Hans apenas observava sua tropa diminuir: um por um, os soldados nazistas iam caindo, como sementes que voltam à terra. No comando do general Dwight D. Eisenhower, as tropas do Eixo avançavam sobre as areias da Normandia. Mas Hans sentou: estava cansado por aquele dia. Na verdade, estava cansado de tudo, porém, ainda tinha sede de vida. Queria ver seu pai, abraçar sua mãe e amar Anna, dentre tantas outras coisas. Mas não sairia dali. Ficaria sentado. Afinal, ninguém lhe mataria se não fizesse nada! Jogou a arma longe, mas as balas e os gritos não cessavam. Resolveu olhar sobre os morros da trincheira, percebeu os inimigos tão próximos que até podia sentir o cheiro da ira e o gosto de seu próprio sangue na boca.
Sentou-se novamente. Entre os mortos, Hans chorava. A vida era um filme em sua cabeça. Hans olhou para Gerard, um soldado de Munique que conhecera no campo, agora inerte e teso, com uma bala entre os olhos, e notou que algo fazia volume em seu bolso. Aproximou-se e achou um tablete de chocolate. Um simples e insignificante chocolate. Hans sentou do lado do corpo de seu amigo e notou-se rodeado de soldados que, impávidos, lhe apontavam as armas e lhe gritavam ordens em francês e inglês. Mas se Hans não os entendia, eles menos ainda. Com os olhos fechados, Hans deliciava-se com o pequeno chocolate, o qual o fazia lembrar dos doces que sua avó trazia para ele e Markus nas tardes de domingo em que brincavam na varanda. As armas não lhe significavam mais. Nada importava, nem mesmo a morte. Os gritos e as balas não mais ruíam seu pensamento. Estava liberto. Aquele chocolate era a vida! Não entendeu o porquê de tanto significado em um medíocre doce. E foi a última coisa que não entendeu e o último gosto que sentiu: fora executado com oito tiros, ali mesmo, na trincheira. Mas nada disso importa, Hans já havia entendido tudo.

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