sexta-feira, 19 de março de 2010

O DANÇARINO


Nilso era o nome dele. O nome real dele, embora O Dançarino, como era conhecido, nunca havia antes necessitado de um nome específico... Sua função era chegar, sempre, cotidianamente, às 13h30min, na frente da loja de tecidos e dançar com sua boneca Flora (nome dado por ele em homenagem à tia) músicas mecânicas do tipo que o povo gosta.

[O gerente comercial do empório gostava também... Achava bonitinho o cara que dançava com a boneca, além do mais, atraía o público que passava zumbi pelas calçadas do comércio. Por isso, Nilso, ou O Dançarino, tinha salário fixo e carteira assinada.

O fato é que Nilso, quando não estava O Dançarino, tinha uma vida pacata na vila em que morava. Era casado há 12 anos com a Filomena e, da mesma forma com que o tempo muda tudo, mudara também o sentimento entre os dois. Mudara mesmo, este tal de tempo, ao ponto de que Filomena começou a ficar irritadiça pelo comportamento de Nilso para com a boneca Flora. É que depois do emprego, Nilso dava atenção exagerada à boneca... Todo dia pequenos retoques em sua vestimenta, costurada à mão, com devoção e capricho que sua mãe ensinara... Buscava em catálogos e brechós alguns adereços pra Flora... perucas, meias e saiotes... e a presenteava com perfumes de plantas diversas. Mais: Nilso passou a aparar a barba diariamente, coisa que não fazia desde a época do quartel, e a se arrumar meticulosamente, do penteado ao sapato de courvim. Tudo para Flora... Tudo...
Filomena começou a se sentir escanteada, esquecida, mal-amada. Era como se fosse a serviçal e Flora, a flor dos olhos de Nilso. Era como se a outra virasse a uma, e a uma virasse o nada.
Maquiavel que se vire no caixão, pois toda pressão gera uma revolução. Então certo dia, num descuido de Nilso, que saíra para beber com amigos, Filomena ficou sozinha com Flora em casa e partiu para a agressão... a temível agressão que uma faca de cozinha e uma mulher, gorda e brava, podem acometer a sua acossada vítima. Imóvel, Flora não esboçou resistência.
Quando chegara de manhã, Nilso encontrou sua parceira de dança estripada e decaptada no carpete da sala.

***

Dias de silêncio, Nilso, magoado, sequer conversava com Filomena. Aquela atitude o feriu tão fundo no peito que seu perdão ficou atravessado na garganta, como um caroço de abacate no seu glote.
Numa tarde de sábado, voltando do supermercado, Filomena encontrou Nilso com outra... boneca. Tamara! Muito mais linda e cheirosa que Flora, ela estava lá... imponente... sentada no sofá, com duas malas a seus pés. Neste instante de questionamento, Filomena ainda nem havia largado as sacolas de compra, Nilso saiu do banheiro. Banho tomado, barba feita, perfume e calça de linho. Passou rapidamente o pente de bolso no cabelo preto, encarou Filomena e disse:
Essa é Tamara... E estamos indo embora.

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